Chuva





Não há melhores dias do que aqueles em que já nos equipamos na firme convicção de que vamos mergulhar num mar de aventuras.

Nesses dias escolhemos (ou devíamos escolher) o que melhor se adequa a situações mais improváveis e bem diferentes daquelas a que nos atiramos nos restantes dias (nos dias sem chuva).

Meias, luvas e sapatos impermeáveis e respiráveis ou, como já muitas vezes fiz: calçar um saco de plástico ensanduichado entre duas meias grossas. No mesmo pé, entenda-se!

Sabiam esse truque?

A primeira meia até pode ser fina e suave, a meia exterior essa quer-se grossa, para que possa absorver e até manter a água que vier!


As circunstancias que me levaram a ter os "pezinhos" submergidos num simples balde de água quente, sentado em frente de um calorífero no banco de urgências do velhinho Hospital da Vila de Sintra (que já não existe) e onde cheguei de ambulância trazido da Serra, fizeram nascer em mim uma forte criatividade inventiva para ofuscar o frio do ar e da água da chuva.

Percebi o ridículo com a chegada dos amigos preocupados! Não foram capazes de conter as gargalhadas!

Meia fina e sapatos de lona, frio e chuva de inverno, pés gelados, ingenuidade e entusiasmo de jovem errante e apaixonado pela montanha, conversas redondas no meio dos muitos brinquedos da loja de biclas do Linhó, e o pensamento de que saindo para a rua e pedalando forte pela montanha acima aquecia!

É fácil perceber que a pedalar não se tem a batida forte da pele e do sangue no solo. Tudo gira no ar e a refrigeração progride rapidamente... Depois o pânico fez o resto!

Não sentes os pés... Arrastas-te... Tentas procurar uma casa... Berras, gritas... Os cães ladram e os portões das quintas não se abrem por medo. Abre-se a a porta de uma casa humilde... Aconteceu!
Entretanto enervei-me e enfureci-me... Era Natal e não senti solidariedade!

Nesse dia prometi que nada iria fazer para adquirir bens excedentários, que me poria em guarda!
Iria antes pelo caminho da preocupação, da incerteza, do simples e necessário. Contentar-me-ia com a fortuna da amizade, da partilha e do conhecimento! (sorrizinho!)


A história dos pezinhos não termina aqui!

15 dias depois, no alto da serra do Gerês, com um frio de rachar e uma chuva miudinha, mas já com uns sapatos normalecos de encaixe e um par de meias suplentes na sacola, tive a grande ideia de parar no meio da chuva e de trocar as meias molhadas pelas secas...

Ora o contacto dos pés molhados com o ar muito frio, e o medo trazido pela memória do drama recente, aceleraram de novo o pânico...



E, com a compreensão dos meus colegas, descemos rápido à vila e procurámos um café para nos abrigar... Ainda consegui correr e dirigi-me rápido ao fundo da sala onde um recuperador de calor reunia alguns homens locais...
Com licença, com licença. Apressei-me a encontrar a salvação...

Possa, que surpresa! ...Mas momentos antes pelo olhar dos tipos que se afastavam, desconfiei!
O que faziam meia dúzia de homens em frente a um fogão de sala apagado? ...Hábitos...!

A mulher do dono da taberna com loja contigua emprestou-me uma toalha, vendeu-me um par de meias e a promessa de que nessa tarde os meus pezinhos não se iriam mais queixar... Desconfiado subi de novo à montanha...

Mas só com a compra de umas verdadeiras botas de ciclista de montanha, em gorotex, a minha confiança para enfrentar os elementos da natureza voltou... Mas que botas! ...Essas sim, fizeram muitas e muitas serras, rios e lama. Invernos e Verões...


Em Lisboa não há o frio do Gerês ou da Serra de Sintra, mas optei por usar meias para a chuva! Não vá acontecer... ... Entendem?


Avancemos.


A Chuva traz-nos gotas, espessas ou finas, que só são quentes abaixo do equador, mas que, mesmo frias por estarmos do lado de cá e também por se misturarem com o vento produzido pela velocidade da deslocação, nos premeiam o rosto com a gentileza de um sabor talvez muito próximo ao que McNamara sente quando desliza na onda da Nazaré. (outro sorrisinho!)

Ou seja, é um bem-estar forte e grande se não nos fecharmos nas grilhetas que um desmedido preconceito criou, no que podemos definir como um desejo de conforto pelos opostos, em que estando frio queremos quente e vice-versa, mas que nos conduz a uma letargia decepada de emoções e nos afasta da harmonia com os elementos verdadeiros da natureza, que tenho para mim que sendo pura, é revigorante!


Quando descobri o conforto dos equipamentos que nos protegem dos extremos, tornei-me ainda mais explorador e sensível à Mãe Natureza!

Nos dias de chuva, sobretudo os de Inverno, ou te chamam doido ou te admiram. E aí tens um prémio, um desafio, e o prazer de uma embrionária revolução de mentalidades!

O que seria do surf e do snowboard se não tentássemos compreender tudo o que a natureza teima em nos oferecer? A satisfação também provem da superação de barreiras e dificuldades.

A humidade e o frio podem ser muito facilmente suportados, não na exigência imediata por uma outra situação oposta, mas com a imaginação.
Ou dito de um modo simples… Está molhado… Chega-se ao destino e seca-se ou muda-se de roupa. Planeamos isso previamente. Esta-se a arfar de calor... Igual atitude.


Porque será que os miúdos gostam de pisar as poças?

Diga-me porque ficou famosa no cinema a cena da dança na chuva no filme "Singin´ in the Rain"?


Já fiz com agrado várias vindimas no Sul de França, em que na maioria dos dias com "galochas" e impermeável até aos joelhos se cortavam uvas debaixo de chuva constante!

E..
Fiquei surpreendido mas hoje sorrio, ao pensar na surpresa e no susto que apanharam todos os sentinelas nas guaritas do Quartel onde nessa remota noite de muita chuva, eu, como Oficial de Dia, não pude pronunciar a contra-senha porque todos eles estavam longe de imaginar que alguém caminhasse naquela trovoada! (sorriso!..)
De facto a chuva pode ser amiga dos nossos inimigos!

E prega-nos partidas!..

Com ela desde cedo cumpri uma boa relação de amizade que me enaltece!
Se o amigo que me lê faz BTT, sabe o que é andar com muita lama e passar rios com os braços no ar e ela (a BICLA, entenda-se) lá em cima, quando a água nos dá pelo pescoço.


Na cidade é tudo mais suave...


Há o respingar das gotas de água saídas após uma roda gorda pisar os baixios do asfalto onde se concentra a agua, que nos acariciam o corpo e até o rosto...

Sair com uma amiga que nos guarda da lama. É BOM.
Mas se tal não acontecer, vamos com certeza sentir as rodas finas rasgar a larga superfície liquida e espelhada que as caixas de drenagem entupidas das águas pluviais tratam de nos oferecer... E isso dá-nos um prazer ecuménico e infantil.

Estes lagos urbanos não são tão profundos quanto os da montanha mas produzem um efeito lúdico idêntico.

E Lisboa nesses dias dá-nos mais cheiros.

Reparei há muito que a chuva nas outras cidades é diferente, tal como os cheiros!
Lisboa tem cheiros e chuvas únicas!


Apesar de nunca nada ser igual na certeza do mesmo percurso, quando nesses dias nos decidimos por uma atitude de viagem, torna-se perigoso!

É ou não verdade que a maior parte dos dias gostamos de nos movimentar por percursos de vida onde a morfologia da semelhança nos cria segurança?
Mas depois há os sonhos de viagem!

Seremos o resultado dualista da certeza e incerteza, aventura e comodidade, vadiagem e sedentarismo?


E como não há crónica sem conselho, a todos incluindo a mim, permitam-me ainda rabiscar o que dizem os eruditos e a razoabilidade aconselha.

Que numa rua, via ou estrada com chuva, onde como sabem existem muitas ratoeiras que a nebulosidade da água cria e esconde, não é conveniente ir por caminhos incertos e desconhecidos e é aconselhável seguir os percursos onde as semelhanças e o conhecimento adquirido criam consensos e fidelidades. …Os caminhos amigos.


Necessitamos urgente de Poetas que dignifiquem os dias de chuva!

Não sou poeta mas tentei aliciar-vos para pedalarmos em dias cheios de encantamento e de muita água por todos os lados!


BOAS PEDALADAS à chuva... Sobretudo de gabardina!

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